O dilema do último leito

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Por José Luiz Toro da Silva, Advogado. Mestre e Doutor em Direito

Os problemas que estamos começando a enfrentar em nosso país com referência a escassez de recursos, principalmente de aparelhos respiradores e de leitos de UTI, para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, fazem com que tenhamos que nos preocupar com as escolhas que as unidades de atendimento deverão realizar. No sentido de cuidar da necessária triagem a fim de saber quem terá acesso ao tratamento e aos recursos existentes e quem, possivelmente, irá morrer, se a curva de crescimento do infectados não se reduzir e a população não atender as determinações de isolamento social. Estamos falando da chamada “Escolha de Sofia” que transfere aos profissionais da saúde, em momentos de forte pressão e stress, a decisão de escolher quem poderá ser salvo, diante da situação de profunda escassez de recursos.

Esse tema esteve em evidência nos últimos dias, principalmente na Itália e Espanha, como informado pelos noticiários, pois os sistemas de saúde daqueles países, públicos e privados, não estavam preparados para atender a citada demanda de cuidados em face da pandemia, sem qualquer precedente na história da humanidade.

Sabemos que em alguns lugares do Brasil o sistema de saúde começa a emitir ruídos de sinais de esgotamento, pois já não existem UTIs para todos que necessitam da mencionada atenção. E, pelo que nos informam os experts, ainda não estamos no pior momento.

Num cenário de escassez de recursos todos serão afetados: ricos e pobres, famosos ou anônimos, brancos e negros, com alta ou baixa escolaridade.

Enganam-se aqueles que acreditam que, por possuírem um bom plano privado de assistência à saúde, têm a garantia de tratamento, disponibilidade  e acesso às UTIs ou aos aparelhos respiradores, não obstante tais tratamentos se encontrarem no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde estabelecido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS.

Ora, se a demanda for absolutamente excessiva, a impossibilidade de acesso irá atingir a rede pública e, também,  a rede privada de hospitais.

Ademais, mesmo os hospitais privados que mantém contratos de credenciamento com os planos de saúde poderão ser obrigados, em face de eventual requisição administrativa ou outra forma de cessão, a possibilitar o atendimento através do Estado ou município, ou seja, através do SUS, pois o art. 3º., VII, da Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, deixa claro que para o enfrentamento da pandemia poderá ser adotada “a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

Aliás, verifica-se em um país com dimensões continentais, muitos hospitais privados, por não terem recursos para a aquisição de EPIs, respiradores, sistemas de controle de infecção, remodelagem de UTIs, etc., estão sendo obrigados a realizar parcerias com municípios e Estados, a fim de viabilizar recursos financeiros para o mencionado atendimento, restringindo, ainda mais, a disponibilidade de vagas para a saúde suplementar.

Consequentemente, ninguém tem a garantia, seja no sistema público e/ou no sistema privado, que terá acesso aos recursos necessários para o enfrentamento do COVID-19 no momento da efetiva necessidade.

Diante deste estado de caos, se faz mister que a sociedade discuta os critérios que deverão ser observados para a “Escolha de Sofia”, não deixando para os médicos, que já estão devidamente assoberbados com os atendimentos, efetuar esta triagem de vida e de morte. Por outro lado, a definição de critérios claros e de amplo conhecimento, elimina discriminações que levem em consideração a condição econômica, étnica, social ou daqueles que são “amigos do rei” no momento da escolha.

Precisamos encarar a realidade. Ninguém está salvo.

A Bioética  o Biodireito já discutem, há algum tempo, esta situação.

Cinco são os princípios básicos da bioética, como bem observa Bernardo Augusto da Costa Pereira, em estudo sobre O Biodireito brasileiro, seus princípios e a bioética, “quem buscam proteger o ser humano: princípio da autonomia, princípio da beneficência, princípio da não maleficência, princípio da justiça e princípio da reverência à vida. Aludidos princípios devem ser somados aqueles aplicáveis ao Biodireito, que são, como observa o mencionado autor, “o princípio da precaução, o princípio da responsabilidade, o princípio da autonomia da vontade e o princípio da dignidade da pessoa humana.”

Portanto, em um momento de absoluta escassez de recursos aludidos princípios devem ser sopesados, procurando a obtenção de critérios de justiça, de dignidade da pessoa humanos e, principalmente, de transparência para que os profissionais de saúde e os órgãos de triagem de pacientes possam adotar as medidas necessárias no momento de crise. Diante deste verdadeiro “estado de emergência”, utilizando-me da expressão usada no Direito Português, urge que esses tema seja discutido pela sociedade, para que sejam observados guidelines por entidades públicas e privadas, com legitimidade, para resolver estes impasses, retirando das costas dos profissionais de saúde está tormentosa escolha.

Para colaborar com o debate sobre este assunto, trago à colação importante artigo de autoria do Prof. Dr. Ezekiel J. Emanuel e outros, publicado no The New England Journal of Medicine, em 05 de abril de 2020, com o título “Fair Allocation of Scarce Medical Resources in the Time of Covid-19”, cuja leitura recomendamos.

Citado professor da Universidade da Pensilvânia e os outros autores apresentam seis critérios para se chegar a uma alocação justa de alocação de recursos nos tempos do coronavírus, a saber:

  1. Maximização dos recursos existentes, ou seja, esses escassos recursos devem ser muito bem administrados;
  2. Os recursos escassos existentes devem ser destinados, prioritariamente, para os profissionais da saúde que foram afetados pelo coronavírus, pois desta forma eles poderão retornar com maior rapidez para o front de enfrentamento;
  3. Seleção aleatória para pacientes que se encontram em similar situação de prognóstico de vida, sendo que devido à pressão do tempo e das informações limitadas, é preferível realizar seleção aleatória (quem chegou primeiro, p. ex) do que tentar julgamentos prognósticos mais refinados em um grupo de pacientes aproximadamente semelhantes;
  4. Priorizar diretrizes de utilização que tenham fundamento em evidências científicas;
  5. Priorizar pessoas que participam de programas de pesquisa para a obtenção da cura para o coronavírus;
  6. Não deve haver diferença na alocação de recursos escassos entre pacientes com COVID-19 e pacientes cm outras condições médicas.

Por outro lado, a citada discussão da utilização de recursos escassos deve também ser sopesada, cuidadosamente, com as regras de ortotanásia, lembrando que o parágrafo único do art. 41 do Código de Ética Médica deixa expresso que “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.”

O presente artigo não tem por finalidade esgotar o assunto, estabelecer juízos de valor definitivos ou já discutir os critérios que deverão ser observados, mas apenas trazer à colação este importante assunto, que necessita ser amplamente discutido com a sociedade, de forma multidisciplinar, principalmente com as entidades médicas, Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, órgãos reguladores, Ministério da Saúde, Secretários Estaduais e Municipais de Saúde, entidades consumeristas, etc., realizando um amplo debate para o estabelecimento de guidelines sobre a utilização dos escassos recursos existentes, públicos e privados, dentro de princípios de bioética e biodireito, desonerando os profissionais de saúde de ter que realizar a mencionada escolha na beira do leito.

A urgente discussão desse assunto se faz mister, sendo que devemos encontrar critérios de equidade para o enfrentamento da alocação dos escassos recursos existentes, públicos e/ou privados, em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana que se encontra no texto constitucional.

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