Carolina Jardim – Superintendente de Garantias da corretora Marsh Brasil
A Lei 14.133/2020, publicada no Diário Oficial da União em 1º de abril deste ano, marcou o fim de um debate iniciado mais de duas décadas atrás, com o PL 1.292/1995. Bastante discutida e aguardada pelo mercado segurador nacional, a Lei traz diversas (e bem-vindas) inovações à disciplina legal das licitações e contratos administrativos, dentre as quais merece destaque o novo regramento das garantias a serem exigidas para tais contratos.
No capítulo que trata das garantias (artigo 96 e seguintes da Lei), está previsto que, a critério da autoridade competente, poderá ser exigida a prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e fornecimentos; em o sendo, caberá ao contratado optar por qualquer uma das modalidades previstas no art. 96, § 1º, da Lei, dentre as quais figura o seguro garantia. A Lei ainda dispõe que tal garantia será no valor de até 5% do valor inicial do contrato, sendo autorizada a majoração desse percentual para até 10%, desde que tal medida se justifique vis-à-vis a complexidade técnica e os riscos envolvidos no projeto. E, finalmente, a Lei inova ao estabelecer que, nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto (assim definidos como aqueles cujo valor estimado supere R﹩ 200 milhões), poderá ser exigida a prestação de garantia no valor de até 30% do valor inicial do contrato, na modalidade seguro-garantia, com cláusula de retomada (o step-in).
O step-in não é novidade no Brasil, estando contemplado há quase 20 anos nas normas que regulam o seguro garantia no país. Consiste em uma das formas pelas quais uma seguradora pode se desincumbir da sua obrigação de indenizar o segurado em caso de sinistro – sendo a outra o pagamento dos prejuízos decorrentes do inadimplemento. Não obstante, historicamente, as seguradoras brasileiras se afastaram dessa forma de indenizar, e isso especialmente em função da insegurança que permeava o instituto do step-in, quanto à possibilidade de a seguradora, ao assumir a execução do contrato, ser acionada por débitos relacionados ao prestador anterior (notadamente, débitos trabalhistas, fiscais e previdenciários).
Por outro lado, temos, no país, uma situação trágica que precisa ser endereçada: a das obras inacabadas. Quanto mais tempo uma obra fica parada, mais caro é para retomá-la e concluí-la. São investimentos bilionários que se perdem, diariamente, em deterioração da estrutura construída, perda de materiais e equipamentos, e na dificuldade de encontrar outro prestador interessando e com condições de assumir o projeto.
Foi mirando na resolução desse problema que o governo incluiu, na nova Lei de Licitações, a possibilidade de exigência do seguro garantia com cláusula de retomada (ou step-in) para as obras e serviços de engenharia de grande vulto; nesse cenário, a seguradora: (i) deverá integrar o contrato público garantido, firmando-o, assim como seus aditivos, na qualidade de interveniente anuente; (ii) poderá monitorar e fiscalizar a sua execução; e (iii) deverá, em caso de default do contratado (i.e. sinistro), executar e concluir o objeto do contrato, ou pagar indenização, desde já fixada em 100% da importância seguradora indicada na apólice.
Muito embora seja aplaudida a iniciativa em prol da reversão da triste realidade de obras inacabadas no país, o legislador perdeu a oportunidade de reforçar o texto legislativo com dispositivos que corroborassem a liquidez e exequibilidade dos contratos de contragarantia face aos tomadores inadimplentes, sabidamente muito frágeis no Brasil, e a proteção das seguradoras contra sucessão em caso de step-in, para o que bastaria ter-se replicado o regramento já construído e aplicável à alienação de UPIs (Unidades Produtivas Isoladas) no âmbito de recuperações judiciais (parágrafo único do artigo 60 da Lei 11.101/2005).
A preparação do mercado frente ao novo cenário
A Nova Lei de Licitações demandará uma boa dose de reestruturação ao mercado de seguro garantia no país. A tendência é a consolidação de corretoras de seguros e seguradoras especializadas, inclusive por influência do mercado ressegurador, que dificilmente concederá cobertura a seguradoras que não estejam adequadamente preparadas para subscrever e monitorar esse (novo) tipo de risco.
As seguradoras com interesse em operar nesse novo formato de garantia ainda estão avaliando como irão se organizar para fazer frente ao novo escopo de monitoramento de riscos nele embutido; discute-se a internalização ou terceirização dessas atividades, mas parece haver consenso quanto à necessidade de investimentos em ferramentas tecnológicas para a gestão eficiente das informações relacionadas ao monitoramento de projetos.
Há, ainda, a tendência a uma análise mais rigorosa das demandas por esse tipo de garantia pelo mercado segurador, com exigência de mais e melhores informações desde a largada, o que demandará alguma adaptação por parte dos potenciais tomadores e contratantes dessas garantias. Com isso, vislumbra-se, a médio e longo prazo, um movimento de fidelização entre seguradoras e tomadores, a partir do estreitamento das relações e confiança recíproca proporcionados por esse novo formato.
Tal cenário configura uma oportunidade para o crescimento e desenvolvimento do mercado segurador, no que diz respeito a grandes projetos do setor público. A nova lei torna ainda mais importante uma assessoria especializada na estruturação e avaliação da matriz de riscos para cada projeto. Além disso, a fidelização dos clientes com as seguradoras, com o desenvolvimento de uma relação de confiança para disponibilização de capacidade para esse tipo de garantia, assume um papel mais relevante do que a simples busca pelo menor preço. Especialização e relacionamento são os pontos chave para uma boa adaptação às mudanças que vêm pela frente.